Batuque Book. O título é uma paródia de song book, mas basta a pronúncia onomatopaica e já se sabe o conteúdo: gêneros musicais de Pernambuco em que predominam tambores e outros instrumentos percussivos. A série foi planejada para 15 volumes. Começa registrando notações melódicas e rítmicas, além das letras das toadas de maracatu.
Depois virão, cavalo marinho, côco e o que mais houver. Tomara que também haja patrocínio.
Não quero humilhar ninguém, mas estou no Recife a passeio, diante do mar. Interrompo as muitas horas vagas e apuro que um dos autores do livro, Climério de Oliveira Santos, estará em São Paulo em fevereiro para lançar esta obra tão original quanto oportuna.
Além dos registros colhidos diretamente nas fontes populares, o leitor encontra um CD com gravações dos grupos Leão Coroado, Porto Rico, Encanto da Alegria, Cruzeiro do Forte, Estrela de Ouro de Aliança e Leão Vencedor. Os três primeiros, urbanos do Recife, usam o baque virado, que se caracteriza pelo toque dobrado, exclusivamente vocal e percussivo, com andamento bem definido; e os três últimos, oriundos da zona rural, tocando de forma livre, um tanto anárquica, e até incluindo instrumentos de sopro.
O maracatu combina a força do baque e uma certa melancolia nas toadas, como é próprio dos ritmos afro-brasileiros. A Federação Carnavalesca de Pernambuco informa a existência de 31 “Nações”, mas a voz do povo multiplica este número, provavelmente contabilizando pequenos grupos não reconhecidos pela exigente burocracia cultural. Lembro-me dos mais tradicionais, principalmente o Nação do Elefante, onde reinava dona Santa, já falecida.
Dizem-me que está em decadência – o mesmo que dizer terem a Mangueira ou a Vai-Vai descido para a segundona. Faço votos para que tudo volte a ser como antes.
Muito antes, aliás, pois Câmara Cascudo, no início dos anos 1970, afirmava que o Elefante era um “maracatu condenado à morte pela ausência de renovação”.
Em 1960, o grande artista Abelardo da Hora, figura de proa no Movimento de Cultura Popular, instalou na entrada da Rua da Imperatriz, acima dos transeuntes, imenso chapéu de sol, igual ao que cobria dona Santa. Multicolorido, adornado com franjas e circulado por espelhos cristalinos.
Apesar das atuais dificuldades da Nação Elefante, o maracatu, como gênero, ressurge fortemente no Recife. Não disputa com o frevo, que é outro departamento, com a sua base metaleira e piruetas na coreografia. O maracatu desfila cadenciado, lento, com os seus personagens dramáticos: rainha, o rei, damas de honra, princesa, calungas, damas-do-paço, escravo, batuqueiros.
O Batuque Book difunde informações valiosas para compreendermos o maracatu na atualidade. Um deles, o Porto Rico, exatamente aquele de maior sucesso, introduziu o atabaque em sua “bateria”. Para isso invocou a tradição negra dos cortejos de Reis do Congo. Os textos de Climério Santos e Tarcísio Resende devem ser lidos na íntegra, por serem verdadeiras aulas sobre o tema. Aqui vai uma pequena amostra de suas detalhadas explicações.
Diz Climério, referindo-se ao esforço empreendido para uma transcrição fiel das toadas: “Ralamos um bocado. Transcrever esse tipo de música para a partitura é trabalho meticuloso, que exige uma audição acurada, requer muita habilidade técnica e paciência. Por mais profícuo que seja o músico responsável pelas transcrições, ele tem que rever o trabalho diversas vezes e não são raros os casos em que, depois de finalizar uma partitura, ele tem que descartá-la para fazer de outro modo.
Depois, para escrever a partitura, é necessário tocar o que foi escrito para o mestre e os batuqueiros ouvirem, checar nota por nota, a letra, o ritmo e as nomenclaturas diversas desse universo.”
Sobre o baque virado, usando informações dadas pelos orientadores do batuque, chamados mestres, Climério esclarece que “a palavra ‘virado’ diz respeito ao ritmo tocado pelos maracatus e virar o baque é dobrar as batidas de vários instrumentos tocando simultaneamente. Para as nações, o baque é um dos distintivos de cada agremiação”.
Já o baque solto é cantado como marcha, samba em dez versos, samba em seis e galope.
A percussão é complementada por toques de trombone e trompete. Difere radicalmente do virado, segundo Climério: “Numa determinada música do baque solto, do começo ao fim, o ritmo instrumental praticamente não muda – o que não quer dizer que seja fácil a sua execução – ao passo que o ‘baque virado’ apresenta as suas variações.”
O outro autor, Tarcísio Soares Resende, comenta a inspiração para escrever a música do maracatu. Ela veio da observação da grade usada pelos maestros na regência de orquestra.
Constam da grade todos os instrumentos e Tarcísio concluiu que o método também poderia ser usado na documentação escrita dos ritmos folclóricos, entrando os instrumentos populares no lugar de violinos, flautas & companhia.
Explica ele: “A partir dessa compreensão, tudo o que eu tocava de percussão popular eu passei a escrever e fazer as grades, descrevendo o uso de cada instrumento. Quando eu conheci Climério vi nele exatamente um músico de formação popular e erudita, que tem um trabalho de pesquisa e está interessado nas manifestações populares. Ele também escreveu os ritmos e as melodias de várias manifestações. Juntamos os nossos conhecimentos e resolvemos escrever um song book, que se transformou no Batuque Book.”
Carlos Sandroni, que fez a revisão musical e assina prefácio, chama a atenção para o fato de que os maracatus pernambucanos já inspiraram músicos do porte de Francisco Mignoni, Egberto Gismonti e Guerra-Peixe. Sandroni assinala que o Batuque Book partiu do estudo publicado por este último, em 1950, mas oferece aperfeiçoamentos no processo de transcrição.
Neste ponto, afirma ele, o novo livro fez importantes avanços: “Primeiro, aborda vários maracatus, enquanto Guerra-Peixe centrou sua pesquisa em um único grupo, o maracatu Elefante. Segundo, inclui os maracatus rurais (ou de ‘baque solto’), que Maracatus do Recife só abordou de passagem, e aliás com certo menosprezo. Finalmente, este Batuque Book lança mão das facilidades tecnológicas a que hoje temos acesso, para oferecer a seus usuários não apenas transcrições em pauta musical, mas também gravações originais nas quais estas se basearam, arquivos digitais das transcrições e um banco de sons dos maracatus, permitindo reproduzir e manipular seu som em computadores.”
Com este primeiro volume patrocinado pelo governo de Pernambuco, prefeitura do Recife, Chesf e outros parceiros tem seqüência, no século 21, a faina de Mário de Andrade nos anos 1930. A nova pesquisa centra-se no recorte percussivo e foi desenvolvida por dois jovens musicólogos de sólida formação. Um deles, Tarcísio, dirige no Recife o grupo Quebra-Baque, núcleo permanente de ensino para interessados em batucar de acordo com a tradição.
Para sentir o entusiasmo que a aprendizagem desperta, falei com os alunos Marcos Antunes e Fabíola Falcão, ele pesquisador de mercado, ela publicitária. Empolgação explícita, superlativa, com os métodos de ensino. Ambos me disseram que são do baque virado, súditos fiéis da Nação do Porto Rico. E que o cenário mais lindo para os muitos verões de suas vidas é o Recife pegando fogo na pisada do maracatu.
fonte: http://www.overmundo.com.br/
Não quero humilhar ninguém, mas estou no Recife a passeio, diante do mar. Interrompo as muitas horas vagas e apuro que um dos autores do livro, Climério de Oliveira Santos, estará em São Paulo em fevereiro para lançar esta obra tão original quanto oportuna.
Além dos registros colhidos diretamente nas fontes populares, o leitor encontra um CD com gravações dos grupos Leão Coroado, Porto Rico, Encanto da Alegria, Cruzeiro do Forte, Estrela de Ouro de Aliança e Leão Vencedor. Os três primeiros, urbanos do Recife, usam o baque virado, que se caracteriza pelo toque dobrado, exclusivamente vocal e percussivo, com andamento bem definido; e os três últimos, oriundos da zona rural, tocando de forma livre, um tanto anárquica, e até incluindo instrumentos de sopro.
O maracatu combina a força do baque e uma certa melancolia nas toadas, como é próprio dos ritmos afro-brasileiros. A Federação Carnavalesca de Pernambuco informa a existência de 31 “Nações”, mas a voz do povo multiplica este número, provavelmente contabilizando pequenos grupos não reconhecidos pela exigente burocracia cultural. Lembro-me dos mais tradicionais, principalmente o Nação do Elefante, onde reinava dona Santa, já falecida.
Dizem-me que está em decadência – o mesmo que dizer terem a Mangueira ou a Vai-Vai descido para a segundona. Faço votos para que tudo volte a ser como antes.
Muito antes, aliás, pois Câmara Cascudo, no início dos anos 1970, afirmava que o Elefante era um “maracatu condenado à morte pela ausência de renovação”.
Em 1960, o grande artista Abelardo da Hora, figura de proa no Movimento de Cultura Popular, instalou na entrada da Rua da Imperatriz, acima dos transeuntes, imenso chapéu de sol, igual ao que cobria dona Santa. Multicolorido, adornado com franjas e circulado por espelhos cristalinos.
Apesar das atuais dificuldades da Nação Elefante, o maracatu, como gênero, ressurge fortemente no Recife. Não disputa com o frevo, que é outro departamento, com a sua base metaleira e piruetas na coreografia. O maracatu desfila cadenciado, lento, com os seus personagens dramáticos: rainha, o rei, damas de honra, princesa, calungas, damas-do-paço, escravo, batuqueiros.
O Batuque Book difunde informações valiosas para compreendermos o maracatu na atualidade. Um deles, o Porto Rico, exatamente aquele de maior sucesso, introduziu o atabaque em sua “bateria”. Para isso invocou a tradição negra dos cortejos de Reis do Congo. Os textos de Climério Santos e Tarcísio Resende devem ser lidos na íntegra, por serem verdadeiras aulas sobre o tema. Aqui vai uma pequena amostra de suas detalhadas explicações.
Diz Climério, referindo-se ao esforço empreendido para uma transcrição fiel das toadas: “Ralamos um bocado. Transcrever esse tipo de música para a partitura é trabalho meticuloso, que exige uma audição acurada, requer muita habilidade técnica e paciência. Por mais profícuo que seja o músico responsável pelas transcrições, ele tem que rever o trabalho diversas vezes e não são raros os casos em que, depois de finalizar uma partitura, ele tem que descartá-la para fazer de outro modo.
Depois, para escrever a partitura, é necessário tocar o que foi escrito para o mestre e os batuqueiros ouvirem, checar nota por nota, a letra, o ritmo e as nomenclaturas diversas desse universo.”
Sobre o baque virado, usando informações dadas pelos orientadores do batuque, chamados mestres, Climério esclarece que “a palavra ‘virado’ diz respeito ao ritmo tocado pelos maracatus e virar o baque é dobrar as batidas de vários instrumentos tocando simultaneamente. Para as nações, o baque é um dos distintivos de cada agremiação”.
Já o baque solto é cantado como marcha, samba em dez versos, samba em seis e galope.
A percussão é complementada por toques de trombone e trompete. Difere radicalmente do virado, segundo Climério: “Numa determinada música do baque solto, do começo ao fim, o ritmo instrumental praticamente não muda – o que não quer dizer que seja fácil a sua execução – ao passo que o ‘baque virado’ apresenta as suas variações.”
O outro autor, Tarcísio Soares Resende, comenta a inspiração para escrever a música do maracatu. Ela veio da observação da grade usada pelos maestros na regência de orquestra.
Constam da grade todos os instrumentos e Tarcísio concluiu que o método também poderia ser usado na documentação escrita dos ritmos folclóricos, entrando os instrumentos populares no lugar de violinos, flautas & companhia.
Explica ele: “A partir dessa compreensão, tudo o que eu tocava de percussão popular eu passei a escrever e fazer as grades, descrevendo o uso de cada instrumento. Quando eu conheci Climério vi nele exatamente um músico de formação popular e erudita, que tem um trabalho de pesquisa e está interessado nas manifestações populares. Ele também escreveu os ritmos e as melodias de várias manifestações. Juntamos os nossos conhecimentos e resolvemos escrever um song book, que se transformou no Batuque Book.”
Carlos Sandroni, que fez a revisão musical e assina prefácio, chama a atenção para o fato de que os maracatus pernambucanos já inspiraram músicos do porte de Francisco Mignoni, Egberto Gismonti e Guerra-Peixe. Sandroni assinala que o Batuque Book partiu do estudo publicado por este último, em 1950, mas oferece aperfeiçoamentos no processo de transcrição.
Neste ponto, afirma ele, o novo livro fez importantes avanços: “Primeiro, aborda vários maracatus, enquanto Guerra-Peixe centrou sua pesquisa em um único grupo, o maracatu Elefante. Segundo, inclui os maracatus rurais (ou de ‘baque solto’), que Maracatus do Recife só abordou de passagem, e aliás com certo menosprezo. Finalmente, este Batuque Book lança mão das facilidades tecnológicas a que hoje temos acesso, para oferecer a seus usuários não apenas transcrições em pauta musical, mas também gravações originais nas quais estas se basearam, arquivos digitais das transcrições e um banco de sons dos maracatus, permitindo reproduzir e manipular seu som em computadores.”
Com este primeiro volume patrocinado pelo governo de Pernambuco, prefeitura do Recife, Chesf e outros parceiros tem seqüência, no século 21, a faina de Mário de Andrade nos anos 1930. A nova pesquisa centra-se no recorte percussivo e foi desenvolvida por dois jovens musicólogos de sólida formação. Um deles, Tarcísio, dirige no Recife o grupo Quebra-Baque, núcleo permanente de ensino para interessados em batucar de acordo com a tradição.
Para sentir o entusiasmo que a aprendizagem desperta, falei com os alunos Marcos Antunes e Fabíola Falcão, ele pesquisador de mercado, ela publicitária. Empolgação explícita, superlativa, com os métodos de ensino. Ambos me disseram que são do baque virado, súditos fiéis da Nação do Porto Rico. E que o cenário mais lindo para os muitos verões de suas vidas é o Recife pegando fogo na pisada do maracatu.
fonte: http://www.overmundo.com.br/
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